Postado em 12/03/2016
Escrever a escrita
Solange Amado
“Escrever é
saber resistir à escrita”. Foi Marguerite Duras que me ensinou isso. E é o que
tenho feito desde sempre: resistir à escrita. Talvez por isso mesmo, por essa
coisa de escrever, eu tenha me livrado daquela velha história “ela saiu à
escrita”.
Então, estão avisados, não sou cópia xerox de ninguém, porque
eu me invento todos os dias. Há dias em que eu sou simpática; em alguns dias
também posso esparramar uma perversãozinha básica no papel, e ainda há alguns
dias mornos e lânguidos em que eu fico sexy, pelo menos sexy...genária. Afinal,
se é cada um no seu quadrado, o meu é o quadrado do papel, que, em geral, é na
verdade um retângulo, mas isso é um mero detalhe, posso sempre cortar um
pedacinho. Aliás, já nasci com esse pedacinho cortado. Aí vocês podem
argumentar que isso é algo inexorável. Maktub. Está escrito. Uma vez mulher
sempre mulher. Pode ser, até concordo. Não tenho nada contra, já vou avisando.
Mas mulher é que nem japonês, dizem que não existe japonês individual. Mulher é
assim meio origami, se dobra e se desdobra em mil e uma utilidades, ou
representações, pra ficar mais delicado.
Se estão me acompanhando, já entenderam que só uma folha de
papel já dá pra gente mil e uma possibilidades. Já é muito, mas não bastou.
Descobri as letras. E descobri que podia cruzar as letras com o papel e esse
ato de amor podia gerar filhotes. Foi aí que eu ME GEREI. Baguncei o coreto.
Saí dos trilhos de mim.
Pois é, desde então me lambuzei. E nasço a cada dia. Não há
limites para o escrever.E pra não cair na escrita do maktub, não consigo mais
parar. Posso até ter o pedacinho cedilha do homem nesse meu escrever. Posso até
voar se quiserem, porque alma voa, alma não tem sexo, padronização, fronteiras
ou limites. Alma tem é um tesão danado. E é com ela que eu escrevo. Eu megero a
cada dia, quando sou “má” fugindo à escrita, quando me desvio do que alguns
chamam de correto ou bonito, quando meus parâmetros ficam meio bambos e as
letras escapam meio desordenadas, seminuas papel afora. Eu tento segurar, mas
não o faço por incompetência ou por preguiça ou porque não quero notar quando
elas me passam a perna. Tenho inveja da liberdade delas. É isso.
Quem sabe quando comecei a minha vida pregressa de
escrevinhações? Não sei. Acho que desde o instante em que nasci, comecei a fugir
da escrita. E nessa fuga encontrei as palavras; elas também estavam fugindo,
como descobri logo. E nos identificamos. Não foi bem amor à primeira vista. Não
foi nada bombástico. Não vi estrelas ao meio- dia, os sinos não repicaram quando
eu e as palavras nos encontramos. Nós nos vimos, nos reconhecemos, nos
encaixamos de imediato, com naturalidade, com leveza, já éramos amigas para
sempre antes de nos conhecermos. E só sei que isso é incurável. São elas que, ao
me habitar,me levam para longe do espaço escuro de mim. Me dão um refresco
dessa sina de ser sempre eu mesma, que esta sim, é inexorável.
Até onde isso vai me levar? Quem sabe? Esse é um espaço sem
garantias, sem certezas. Uma invasão de terras. Uma casa da mãe Joana. É assim
a minha relação com as letras. Elas entraram, se instalaram, se inscreveram, me
escreveram. E vamos vivendo felizes para sempre. E como o sempre acaba à meia- noite, minha carruagem acaba de virar abóbora. Hoje não dá pra dançar mais. Já
tirei o bandaid do calcanhar, tomei uma
sopa quente de letrinhas e nos recolhemos ao leito. Eu e as palavras.
E não me perguntem mais. No momento estamos discutindo a
relação.
Maria Solange Amado Ladeira 19/05/15
www.versiprosear.blogspot.com.br
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