É possível a lógica?


Postado em 13/03/2016
É possível a lógica?
Solange Amado
Ele se despede de mim com voz de sermão da Montanha, estilo Helder Câmara, me abençoa e me promete as delícias do paraíso se eu conseguir renunciar às tentações do mundo material. É um Jesus Cristo afável, simpático, pacífico. A nossa angústia vinha da sua ideia fixa de ser crucificado, “fazer a vontade do Pai”. Não sei se alguém pode crucificar a si mesmo, mas, pregos, martelos e facas, seus objetos de desejo, não prometiam um final feliz. O que sei eu?
Ela, por sua vez, entra de mansinho, um tanto fora de prumo, bamboleante. Não me movo para ajudá-la. Naquele lugar, o desequilíbrio é a norma. É muito jovem, bonita, e quando fala, uma espuminha se junta no canto da boca, o que ela parece não notar. Jogamos conversa fora por algum tempo. Ela se expressa com desenvoltura, elogia a minha sala: “aconchegante como um quarto de bebê”. E então, seus olhos se enchem de lágrimas: “tenho tantas saudades do meu filho...” Procuro não demonstrar meu espanto. Ela nunca teve um filho. Concordo com um movimento de cabeça e não digo nada. Ela continua: “Você sabe, tive um filho... do Pelé”. Espero. “Ambos me abandonaram”. Sua voz falha. Pergunto: “Onde está seu filho agora?” Resposta: “Ele estuda medicina, tem 26 anos. Não sei onde ele mora”. Uma voz interior se insinua por cima do meu silêncio. Ter um filho do Pelé não é uma grande façanha, ainda que seja um filho imaginário. Grande façanha mesmo é ter um filho aos 6 anos de idade. Essa ilogicidade do delírio me fascina. O discurso é concatenado, lógico, sobre um tema surreal. E embarco nele. A história tem mais furos do que telhado de pobre. As palavras atravessam aqueles buracos, como goteiras e encharcam aquele “quartinho de bebê”. Sou inundada por aquele non sense, mas não coloco baldes ou bacias pra recolher o dilúvio. Não dá pra enxugar gelo, deter o estouro da boiada, ou significar todas as formas que toma o desejo. Um buraco tão grande, um vazio tão fundo, uma angústia tão insana, pede um paraquedas, uma rede qualquer que evite o mergulho no nada. Nem que seja um Pelé sacana, um filho ingrato, ou o próprio Jesus Cristo incorporado. Quando o paraquedas principal  falha, sempre é possível acionar o auxiliar. A questão é: e se esse também falha? Nem Pelé, nem Jesus Cristo. Não importa quem, o que, quando ou qual. A lógica, essa pequena rede que nos segura no ar, tem pouca serventia.
Essas questões filosóficas dão reviravoltas na minha cabeça quando entro na pequena cozinha da clínica. Peço, ou melhor, ordeno ao meu colega que me faça um café bem fresquinho. Ele me faz uma reverência e diz “Nem que você seja a Rainha Elizabeth II”. Arregalo os olhos, muda de espanto: Como é que ele adivinhou?

Maria Solange Amado Ladeira –
04/09/12



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