Postado em 17/03/2016
Clareza
Solange Amado
Primeira cena: Peço à minha faxineira que vá ao Mercado
comprar batata iacon. Sei que ela não gosta de confessar que é analfabeta.
Escrevo em uma folha de papel com letras garrafais IACON e a faço soletrar
muitas vezes: I A C O N. Tudo OK.
Ela sai e retorna cinco minutos depois: “É batata inglesa?” Recomeçamos o
processo. OK. Ela se afasta. Retorna alguns minutos depois, desconfiada, coloca
a cabeça pra dentro do quarto: “é batata baroa?”. Respiro fundo e digo: “Vamos fazer o seguinte, você leva
essa folha com o nome da batata, mostra pro dono da barraca, diz que está sem
óculos e assim não pode enxergar o que está escrito. Pronto. Resolvido”. E ela:
“não posso. O pastor da minha igreja diz que mentir é pecado”. “Bom”, respondo
eu, “não é mentira, você não enxerga de perto mesmo. E depois, é uma emergência.
Em emergências, a gente pode mentir... um pouquinho”. Ela hesita, Mas acho que
minha cara de paciência indo pro brejo a convenceu. Consegui! À vencedora, as
batatas!
Segunda cena: Ainda a minha faxineira. Com seu linguajar
pitoresco ela me informa: “tirei todos os tapetes do banheiro. Pode ser
perigoso. Como sua perna “não sunga”, você pode cair”. Pergunto o que é
“sungar”, “bom, sungá é invergá”. “E o que é invergá?” Insisto só pra encher o
saco. Aí, ela já com a paciência supitando: “Que inguinorança! Mais craro é
impossive. É drobá!” Ah! Bom!
Terceira cena: Faculdade. Turma do último período, prestes a
entrar no mercado de trabalho. Dou uma aula sobre a teoria reichiana. Destilo a
minha sabedoria no que diz respeito a Wilhem Reich, sua vida, suas descobertas,
seus problemas como judeu alemão com a ascensão do nazismo, e sua queda gradual
na loucura, duvidosa para alguns. Termino com uma entrevista impactante de sua
filha, Eva Reich. Alguma pergunta? Dever cumprido, recolho meus breguetes e
saio. No corredor, um aluno me espera: “Professora, esse Reich que a senhora
falou aí, é parente do Terceiro Reich?” Sei não. Filho eu sei que não é, mas
pode ser que sejam primos. Em primeiro grau que o sobrenome é o mesmo. Talvez
vocês possam esclarecer esse pormenor para mim.
E aí eu leio nos muitos mestres da escrita, que é preciso ter
clareza ao escrever, ao passar a sua mensagem. E fico matutando. O que é essa
tal de clareza? Emissor – mensagem – receptor. Entre les trois, muita coisa
balança. Tem uma pedra no meio do caminho. Uma pedra nada. Uma pedreira! E a
gente costuma mergulhar e se enterrar nessa dureza de decodificar a mensagem do
outro. Em geral, estamos em frequências diferentes. Vocês hão de convir comigo
que “mais craro que drobá” não existe. Não é?
Tem sempre gente confundindo Carolina de Sá Leitão com
Caçarolinha de Assar Leitão. Que o diga o dono de um posto de gasolina na
periferia. Ele passou maus momentos sob o guarda chuva de uma velhinha.
Indignada com as notícias da roubalheira indiscriminada nesse país, achou que
já era hora de acertar as contas com o dono desse tal de lava jato. Afinal, era
o seu rico dinheirinho indo pelo ralo.
E aí? Opto pela cautela. Entre o claro e o escuro fico mesmo
é com o lusco- fusco, que é uma zona mais confortável onde posso exorcizar o
preconceito, e onde todo mundo pode entender o que quiser. É só “desdrobá” essa
mensagem, sem tapetes pra escorregar nas minhas palavras. E se alguém aí for
parente do Terceiro Reich, pode ficar à vontade, não tenho nada contra. Como
diria o psicanalista Angelo Gaiarsa, ninguém escolhe a família da qual se
sofre. Nem o texto no qual vai se ler. Porque, no frigir dos ovos, é isso. A
festa do sentido somos nós que fazemos, com a nossa implicância nas palavras do
outro.
Maria Solange Amado Ladeira 07/04/15
www.versiprosear.blogspot.com.br
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