A outra escrita


A  outra escrita
Solange Amado
Bebi as palavras com o leite materno. Me lambuzei delas. Eram esses sons mágicos que me afagavam, que afastavam meus medos, que me aconchegavam, me acusavam, me nomeavam. Eu era falada como todas as criancinhas no mundo, antes de falar, e ao absorver essa fala  a adotei como minha. É minha escrita no mundo. Mas como o hadish árabe MAKTUB – está escrito, periga ficarmos enquistados nesse beco sem saída do pau que nasce torto. Maktub. E seguimos repetindo essa escrita. Não sou diferente, venho vestindo alegremente o modelito apertado dessa escritura paralisante, sufocante. Sou, como você, objeto de uma cultura, assujeitada a um discurso familiar e social, inserida numa fala, numa história. Nada contra. Todo mundo embarca nessa canoa furada. É a única que existe. Mas é aí que me rebelo. Não quero ser só objeto. Posso ser sujeito. Quero atracar em outros portos. E aí escrevo, me inscrevo numa nova escrita.
Não sei como, nem quando as costuras dessa escrita familiar e social começam a estourar. E a rebeldia de um novo discurso vai surgindo, surpreendente, desconcertante. As palavras velhas me dizem coisas novas, têm um novo formato. Escrevo. Não me descrevo. Nessa hora não sei direito quem sou. No lodo do inconsciente as palavras minhocas pululam e se retorcem até virem à tona. O anzol do desejo fisga-as, apesar de mim. Não as escolho porque não as possuo. Elas me possuem. Escrevo porque sou escrava. Escrava da liberdade de uma nova escrita, que me roi e destroi essa vontade malemolente de não me envolver. E ao escrever, me afasto do particípio passado dessa antiga escrita paralisante. Resisto, mas o alcatrão das palavras já tomou conta do meu pulmão. Uma vez inspirada, a fumaça das ideias já se insinuou e se espalhou pelo meu organismo. A nicotina da compulsão não deixa escolha. Mesmo que eu tenha outras dez culpas, desta já estou absolvida, tenho indulgencia plenária. Escrevo porque sou incompleta. Escrevo por esse mal estar gigante. Escrevo porque não sou nada disso e sou tudo isso. Escrevo porque não dá mais pra segurar as velhas palavras me mostrando novos sentidos, me abrindo feridas e possibilidades. As palavras seguram a minha mão e acendem a luz para que eu não tenha de enfrentar o vazio do escuro. Escrevo porque existe a angustia de não saber. E é com palavras que construo essa débil e escorregadia ponte que me permite atravessar fronteiras. Escrevo porque me faltam certezas e a dúvida me corroi. Pra arrefecer o mal estar desse lugar incômodo, forro com palavras o chão do meu desejo. Não passa de uma tentativa. Afinal,
                                                            “pode não ser esse calor o que faz mal
                                                             Pode não ser essa gravata o que sufoca
                                                              Ou essa falta de dinheiro que é fatal”  *

*Taiguara “Que as crianças cantem livres”

Maria Solange Amado Ladeira –    25/09/12


Nenhum comentário:

Postar um comentário