Mochileiros


Solange Amado Ladeira
Não sei o que se passa na cabeça de um mortal aparentemente equilibrado, quando resolve juntar os breguetes, botar nas costas e partir como Deus é servido, por onde a sorte (na maioria dos casos, a falta de) o dirigir. Chamam-se a essas criaturas de mochileiras. Um nome maneiro pra pobre curioso, daqueles com bicho carpinteiro no corpo. E como sempre fui pobre, curiosa e com bicho carpinteiro no corpo, e no entender da minha mãe, com o equilíbrio perigosamente comprometido, e ainda por cima, como todo jovem,  com a profunda crença de que fui agraciada com a vida eterna, resolvi que a experiência de globe trotter seria puro paietê e purpurina. Daí, fomos eu, um amigo, cheios de glamour, coragem e sabedoria desbravar esse Brasil e levar uma baita dor de cabeça às nossas famílias. Naqueles velhos e analógicos tempos, a comunicação era tão precária quanto os recursos monetários que possuíamos para empreender essa grande aventura.
Não vou esmiuçar nesse pouco espaço, toda essa saga tupininquim. Fomos subindo Brasil afora, atravessados por um calor de ante sala do inferno, moscas, mosquitos, poeira e muita lábia pra convencer caminhoneiros e motoristas em geral a dar uma carona pra lugar nenhum àquela dupla altamente suspeita de adolescentes perdidos, meio mortos de fome e sede. Dormimos em bancos de praça e até numa cela de delegacia no interior da Bahia, cujo delegado era tão magnânimo quanto Madre Tereza de Calcutá e nos pagou uma refeição de verdade regada a mil conselhos que, naturalmente, caíram em ouvidos moucos.
E foi nessa onda, quando nós, perdidos de amor um pelo outro e com as energias em comunhão com o universo (e a comunhão era tanta que levávamos os preceitos da Santa Madre Igreja ao pé da letra e vivíamos em jejum), foi nesse momento que nós, com nosso ingenuo sonho, fomos dar com os costados na região de Cabrobó, lá pela pontinha de Pernambuco, pertinho da Bahia, uma bifurcação levando do nada pra lugar nenhum. O calor era tanto que eu jurava que o capeta em pessoa viria nos receber naquele inferno. Mas não dava tempo de pensar no calor, a fome era mais urgente, havia uma vendinha próxima, apeamos e fomos conferir. Algumas coisas indecifráveis boiavam numa gordura rançosa. Meu amigo tentava me encorajar, as coisas iam melhorar quando chegássemos ao paraíso, quando o sertão virasse mar (eu não via a hora!). Sentei-me na porta da vendinha tentando me fixar nos nossos objetivos de desbravar o mundo. E foi quando se deu a catástrofe. Comecei a ouvir um som, um chiado esquisito, como se milhares de pessoas à minha volta estivessem comendo biscoito de polvilho. No primeiro momento, pensei que a fome estava produzindo uma espécie de alucinação. Quem dera fosse só uma piração minha! Do chão gretado pela seca, exatamente embaixo de mim, milhares de baratas cascudas e cinzentas emergiam furiosas em uma nuvem escura e sem rumo. Botei a boca no mundo. Os homens se armaram de inseticidas e me explicaram que eram baratas do São Francisco alí perto, que nessa época saíam aos borbotões e comiam o que viesse pela frente.
Pois é, amigos, nesse momento, não precisou de nenhum aviãozinho, nenhum mensagem do além pra apontar muito claramente o rumo que eu queria seguir. O mundo que se danasse. Naquele momento, cercada de baratas por todos os lados que, ainda por cima, ameaçavam escalar o meu corpo e me devorar inteira, minha grande viagem, meu grande sonho era voltar pra casa.
Gastei todo o meu latim, minhas lágrimas e meus últimos e parcos recursos materiais pra realizar uma viagem memorável, num caminhão de porquinhos magrelos, rosados e cheirosos. Foi a melhor viagem do mundo essa de voltar pra casa.
E se querem saber, até hoje não recomendo viagens sem rumo, e de quebra, não receito Cabrobó, nem baratas cascudas.


Maria Solange Amado Ladeira –     06/11/12

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